03/05/10

Estás sentado na grande cama do nosso sótão – que é tão pouco nosso como tu és meu –, encostado a duas almofadas grandes e fofas que já presenciaram tanto e tão pouco do nosso amor. Tens a guitarra no colo e afagas as cordas como uma antiga donzela penteava o cabelo, de forma doce e dedicada, fazendo uma música melancólica dançar no ar pesado, quente. Sabes bem que me perco quando tocas guitarra, sabes que fico absorvida a observar-te e com um nó na garganta. Se não sabes que luto contra as lágrimas, nesses momentos, é porque não prestas atenção. Porque é aí que me sinto mais insignificante e sinto que não te mereço, de todo. Esticas o teu braço magro até à mochila e sacas do maço de tabaco. Tiras um, acende-lo, leva-lo à boca e inspiras. Movimento contínuo, sem pensar. A janela do telhado está aberta, mas o fumo teima em ficar, dando ao quarto a consistência de um sonho sombrio. Ainda te vejo, por entre o fumo nauseabundo, que eu até gosto. Estás magro e distante, olhas para mim como se não me visses e os teus dedos ainda passeiam pelas cordas da guitarra, em longas carícias de amante. Sinto-me um peso. Levanto-me da cama e vejo que deixei lá uma depressão profunda, a marca do meu grande peso. Neste momento, ele parece infinito, e parece querer afundar-me no chão, puxar-me até ao centro da Terra. Eu tentei pedir-te ajuda. Antes de me afundar, tentei pedir-te ajuda, mas tu não ouviste. Tinhas a música a sussurrar-te ao ouvido e a abafar o resto. Também não sentiste o meu cheiro a fugir, o tabaco entorpeceu-te os sentidos; nem me viste a ser sugada pela escuridão viscosa que inundou o teu chão, porque apenas vês aquilo que queres ver e, naquele momento, vias-me a sorrir para ti em cima da cama, bela e nua, tão diferente de mim. A negrura, que se parece com uma espécie de petróleo inodoro e sem sabor, sobe por mim acima, lançando braços à minha volta. Abraçam-me e prendem-me, enchendo-me as roupas de lodo preto. Eu nunca pertenci aqui, ao lugar onde tu vives, onde tu respiras e bebes e comes e fumas, ao lugar onde dormes e sonhas. Não pertenço à tua realidade, nem nunca aí vou pertencer, porque tu és uma ave migratória e eu sou o periquito na minúscula gaiola de um ornitólogo possessivo. Aquele passarinho pequenino que tem um pequeno mundo só seu, e que, mesmo que seja libertado por momentos, nunca consegue pertencer a outro lugar que não ali. Agora, a escuridão já me cobre quase por completo. Os braços de azeviche atacam-me agora o pescoço, tentando estrangular-me. O que nem é tão grave assim, porque eu nunca soube falar. E tu sabes bem isso, sabes bem (ou devias saber) que eu sempre fui uma pessoa da escrita, e que a minha voz vem de uma caneta em papel. No entanto, tu gostas do meu pescoço, e é incrível como eu gosto que gostes dele, e por isso tento salvá-lo. Luto contra a escuridão, e tento gritar, mas tu não ouves. Por fim, a viscosidade cor de noite acaba por me consumir por completo, e eu derreto no chão, até já nada me distinguir do resto de petróleo morto que ondula à volta da cama como o mar à volta de uma ilha. Estás numa ilha deserta. E, de repente, o cigarro acaba e limpas a mão cheia de ervas à cama. É aí que vês que eu não estou, quando estendes a mão limpa para mim. E então reclamas:

- Então, Catarina? Não me digas que estás a tomar banho outra vez!

1 comentário:

  1. penso que nunca conheçemos verdadeiramente ninguém, apenas nos afeiçoamos à pessoa e damos conta de alguns dos seus defeitos e qualidades, e consoante isso partilhamos momentos, bons ou maus, é assim, infelizmente .

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